Gabriel Cruz Lima é jornalista pela Faculdade Cásper Líbero e graduando em Letras pela Universidade de São Paulo. É autor de “O Último Romântico” (BAR Editora, 2020). Assim como o São Paulo Futebol Clube, está de volta no coração dos emocionados e a um passo de um título relevante.
— Existe alguma elaboração além de você mesmo, então. Você fez um texto relevante.
Márcia terminou assim a sessão e eu senti como se ela me desse um pirulito ao final da consulta. E doce estraga os dentes.
Me despeço com um beijo no rosto. Se é um caso profissional e fraterno, tanto faz. Não me pergunto sobre a nossa intimidade, eu a suponho.
Saio pelo corredor e vejo a porta de outros escritórios, Alvarenga e Cia, Sorriso’s estética especializada. Se eu tivesse sido advogado ou dentista, talvez não fosse bem sucedido, mas seria mais calmo, não usaria gola olímpica no verão, óculos de papel machê, carteira vegana, essas coisas que eu repito há algum tempo para mim que o artista engajado usa. Aperto o botão do elevador com a música no máximo no fone, sedento pelo momento em que o tico e o teco conversam sobre a elaboração além de mim mesmo.
Eu odeio Fagner e não sei se a Márcia compreendeu meu ponto. Sim, eu ganhei o Prêmio Desertos de literatura por um monte de coisa escrita a próprio punho. Me comparam com a Lygia Fagundes, uma pensata Elena Ferrante, uma espécie de Reinaldo Moraes à esquerda. Jornais comentando meu talento, Folha de S. Paulo dizendo da relevância da minha obra para a violência brasileira, um ponto de vista da masculinidade sobre o fascimo recém-deposto no Brasil; o Estadão comentava sobre um monstro lírico de 1,65m, natural de Paraíbipunas e que está prestes a fechar o contrato para a adaptação de um dos seus contos pela produtora O2, com o estreante na direção e candidato a protagonista, Matheus Nachtergale. Também fui convidado para ser um dos entrevistados do Roda-Viva e me perguntaram o que eu pensava sobre o ex-presidente, se eu apoiaria o Lula, como não, sobre a economia libidinal, sobre o quanto de mim tem em cada um dos textos. O Michel Laub me perguntou de bate-pronto, sem medo de me vexar em frente às câmeras, se eu gostava de literatura mesmo, ou era tudo piadinha. Em alguma dimensão, revido a provocação com um soco e fico ainda mais famoso sob a alcunha de exótico, temperamental e, sobretudo, relevante.
Relevante. Chego ao térreo e sou recebido por uma lufada de ar quente do pátio. Odeio mais ainda ouvir Belchior depois da terapia. Minha blusa está pegada na pele, estou sentindo o aerosol com cheiro de erva-doce se misturar com a poluição. Meus dentes parecem ensebados. Olho para o outro José, o porteiro, e pergunto se ele leu meu livro:
— E aí, o que você achou do meu livro?
— Quem é você?
Saio com dor de cabeça e medo. Dor de cabeça de ser encontrado na rua e medo por não ter comido nada. Ou dor de cabeça de fome e medo de ser encontrado na rua. Não tem nuvem, não tem estrela, só um borrão enorme das lâmpadas dos postes e dos carros. Eu nunca desmaiei na vida.
Ainda bem que acabou essa playlist de música brasileira. Paro no Estrela da Manhã Lanches e peço um suco de abacaxi com hortelã. A jarra sua entre mim, o croquete escondido, e o outro José, o garçom. As moças saindo do trabalho fazem par com o chapeiro, o croquete mosca e o liquidificador misturando as coisas: um copo só lâminas. José deixa o lanche. Sorrio e agradeço para reforçar um laço de camaradagem, acho que ele lê minhas coisas.
— E aí, o que você achou do meu livro?
— Quem é você?
A Márcia não entendeu meu ponto. Qual a relevância de uma premiação para além do dinheiro no bolso. Tudo bem, não é ilógico pensar que uma ou duas reimpressões vão ocorrer e alguém vai tomar uma taça de vinho a mais com seu parceiro. Pense, a taxa de rolha sendo paga sem muitas preocupações, como uma resposta ao sucesso da obra relevante. Não é de todo mal, mas traz um profissionalismo à baia, não sou mais o garoto iluminado pelo sonho de um Brasil mais justo. Eu sempre fui rico, agora posso virar um rico excêntrico e profissional da escrita, que pula de paraquedas com as amigas da filha mais nova para colocar na coluna de domingo. Isso é relevância.
Certo do meu novo papel no mundo, finalizo o suco e tomo cuidado em arrotar como um sopro, aos solavancos, para não chamar atenção. Volto para casa, é minha agora.
Fui bater à porta de Lídia e redescubro como o tempo passa, agora já não era mais ex, peremptória: esposa. Casamos, porque a resposta verdadeira é o dobro de nada. Ando pelado aos finais de semana, brincando entre as tintas a óleo, uns quadros estranhos que cofio ao olhá-los e beijo a auréola da barriga e o bico do seu peito. Estamos gestando gêmeos: Letícia e Leopoldo.
Minha mãe está morta.
Marcia definitivamente não entendeu meu ponto. Eu estou triste, porque sei desse limite, é como se com a morte dela eu não pudesse ter mostrado o projeto final, do cordão cortado, representação viril naquela estátua com meu nome gravado. Não adianta escrever se não for para magoar minha mãe. Todas as bocas das fotos dela, eu cortei fora e guardo numa caixinha no fundo da gaveta de cuecas. Vejo meus dentes amarelados no reflexo da tela do celular e, com os chinelos todos virados, ligo a televisão. Outro José fala meu nome na bancada do jornal. Falo com meu controle remoto:
— E aí, o que você achou do meu livro?
Ele não responde quem é você, porque já ouviu falar no meu nome em uma roda, qualquer roda de happy hour, ele prestes a selar o bico em um chope glacial, as pessoas com camisetas coladas do Deftones e um all star vermelho, fãs de cinema paquistânes. Eu não sei se tem cinema no Paquistão. Ou melhor tem sim, e ele é relevante.
Recoloco meu tênis, que, por acaso, é também um all-star vermelho e digo para Lídia, vou sair para comprar os cigarros que eu não fumo.
Deixo o carro em casa e vou de metrô, sento no banco lendo meu próprio livro, contracapa tapando a cara, com a esperança de que alguém pergunte sobre o autor, puxe papo. Fale da relevância.
Às vezes eu tenho dúvidas se escrevo em português ou se subo as escadas rolantes em direção à rua. Participei, sim, da formulação do novo programa “Travessias: novos leitores do sertão”, cuja finalidade é rodar bibliotecas móveis e aumentar a quantidade de leitores pelo Brasil. Formulei alguns nomes da lista, fiz questão de deixar o Dalton Trevisan como uma espécie de trunfo estético, porque ele é bonito antes de ser relevante.
Cumprimento um Zé, o outro Zé e quando dou por mim estou de volta ao corredor da terapia. Nunca tinha reparado como as paredes cor de rosa com carpete felpudo dão uma aparência úmida ao ambiente. Estou prestes a tocar a campainha para dizer como é irrelevante isso daqui.
Em uma espécie de autoconsciência, seguro o dedo no ar antes de avisar da chegada. Se eu suponho a intimidade com Márcia, também é certo que atrapalhar outra consulta não seria o mais legal. Fico oscilando na ponta dos pés, indo pra trás e pra frente vendo o letreiro escrito Márcio e o número CRP; coloco a mão no bolso, olho o celular, rio de algumas coisas bobas, fico puto. Sento no chão.
Antes de me acometer a ideia vaga de um ioga à espera, me vejo olhando os outros letreiros. Se descartei o direito pelo desinteresse, me detive mais a fundo no consultório do dentista. Sorriso’s estética especializada. Doutor Belmiro Assis. Sem número, mas com endereço. Estou fazendo o mesmo nada que ele, adivinho.
Antes de bater à porta, uma rapaz louro do tipo prancha de surfe, pede que eu entre. Pela feição dele julgo que talvez seja o filho, ou o neto do tal Belmiro Assis.
O espaço do dentista deve ocupar mais ou menos dois blocos de apartamento, de modo que tem uma espécie de recepção com umas revistas em quadrinho e de fofoca jogas à mesa. Um filtro cinza high tech combinando com a cor das paredes e do cartão. Belmiro Assis, especialista em implante bucal premium. Pergunto ao Patrick Swayze o que era aquilo.
— Novidade do mercado, um banho químico de ouro 24 quilates no dente. 50 mil cada dente. Eu mesmo que faço.
— Isso sim é relevante.
Da redação: este é o décimo primeiro de uma série de 16 textos do autor Gabriel Cruz Lima. O folhetim sai toda sexta neste mesmo portal (Aboio) e nesta mesma hora.
As ilustrações são de Geórgia Ayrosa.